Uma praça em Santos. O picadeiro era de concreto e o cenário as árvores ao fundo. Uma vez meu pai brincava boneco em um espaço que era perto do mar. O chapéu rodava pra conseguir o sustento. O pouco dinheiro de um, é o café do palhaço e de seus filhos. A brincadeira tradicional, sempre a mesma, ano após ano. Refaziam-se as saias, ficavam os bonecos de madeira. Cuidadosamente a pele era pintada de preto com olhos espertos. Se ver um boneco do mestre Saúba de Carpina, verás a arte de construir bonecos.
O palhaço popular de maquiagem pouca, chapéu trançado de fitas e a calça feita da mesma forma, coloria o olhar das crianças. Um Mateu, um Bastião. O palhaço batia o pandeiro, contracenava consigo mesmo e triangulava com o público. Retirava da malinha um boneco negro como aquele palhaço que se apresentava. O boneco de mestre Saúba tinha uma vida que o ator só emprestava o espírito. Um boneco inexplicavelmente falante. Falava enquanto a boca do ator não se movia. Ventriloquia é uma arte de lábios cerrados e voz solta. Aquele palhaço de boca miúda, aquele boneco de boca vermelha, aquele olhar de lembrança.
E ele dizia: Bastiãooo?
E o boneco respondia: o ooi..
O diálogo solitário do ator, tomava vida na personagem de cilíos compridos.
Esse boneco foi desaparecido, certa vez, em Santo André. Numa temporada confusa do ator. Perdeu seu companheiro de praça. Seu Bastião querido. Toda a vez que a brincadeira terminava. Na hora de guardar o brinquedo. Meu pai cantava uma canção de Luiz Fidélis. A versão de meu pai vinha de dentro. Me lembro tanto quando ontem, de sua voz atravessando o espaço em notas graves. Seus lábios ligeiramente curvados, desenhados como são. Cantavam.
Eu sou a flor do mamulengo
Me apaixonei por um boneco
E ele neco de se apaixonar
E ele neco de se apaixonar
E ele neco de se apaixonar e ele neco
Se no teatro eu não te encontrar
Boneco eu juro vou me esfarrapar
Eu não consigo viver sem teu dengo
Meu mamulengo
A letra se repetia melosamente, as lágrimas eram rios, que davam passagem pra dor e pro amor que sentia o ator pelo seu personagem, Foi a última vez que me lembro de Bastião.
E na arte de construir espetáculos, meu pai adentrou, com seu boneco gigante, esse feito por suas mãos. Seu corpo se empresta como órgãos doados de um indigente para um velho louco. Juvenal, o primeiro boneco dessa história, o ator em cena vestia então cada membro, cada pedaço e por fim, trazia no peito uma empanada de mamulengo. A história tinha outras histórias em si mesma. E o homem palco se desprendia com os pés calçados.
Por Mariana Acioli. 26 de Maio, 2017